Notícias

Notícia

A "contabilidade criativa" começa a se tornar perigosa

Não é de hoje que o governo federal usa de truques e malabarismos contábeis de toda natureza para alcançar a meta fiscal prometida a cada ano

Não é de hoje que o governo federal usa de truques e malabarismos contábeis de toda natureza para alcançar a meta fiscal prometida a cada ano. Essa prática continuada distorceu de tal forma o superávit primário obtido que o próprio Banco Central passou a adotar outro conceito, o do resultado primário estrutural, para estimar o efeito da política fiscal sobre a demanda agregada da economia - se contracionista ou expansionista.

O resultado estrutural exclui as alterações em receitas e despesas decorrentes do ciclo econômico e as receitas e despesas extraordinárias, ou seja, não recorrentes.

A novidade da "contabilidade criativa" é que a Caixa passou a usar recursos próprios para pagar benefícios do programa Bolsa Família, do seguro desemprego, do abono salarial e até mesmo do INSS. Os valores são significativos. O balanço da Caixa relativo ao primeiro semestre deste ano registrou um crédito contra o Tesouro de R$ 3,9 bilhões por pagamento dos benefícios sociais.

A Caixa passou a utilizar recursos próprios porque o Tesouro Nacional não repassa o dinheiro para pagar os benefícios sociais em montante suficiente e de forma tempestiva. A situação chegou a tal ponto que a diretoria jurídica do banco estatal sentiu-se na obrigação de solicitar, em meados de julho, uma intervenção da Advocacia Geral da União (AGU) para que os repasses sejam regularizados e os custos financeiros incorridos pela Caixa com os pagamentos dos benefícios do Bolsa Família sejam pagos.

O assunto foi encaminhado à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF/AGU) e aguarda deliberação. Provavelmente o recurso à CCAF/AGU só ocorreu porque as negociações com o Tesouro para a regularização dos repasses não chegaram a um bom termo.

Há um aspecto do ofício encaminhado à CCAF/AGU pelo diretor jurídico da Caixa, Jailton Zanon da Silveira, que merece ser destacado. Ele requereu que a AGU faça um exame da cláusula contratual relativa à faculdade da Caixa de realizar os pagamentos dos benefícios sociais com recursos próprios, "de modo a que, nos termos da lei complementar 73/93, seja a interpretação fixada e unificada no âmbito da Administração Pública Federal". Essa cláusula consta do contrato assinado pelo banco estatal com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome para pagar os benefícios do programa Bolsa Família.

O pedido indica que a área jurídica da Caixa deseja um respaldo da AGU para que o banco continue usando recursos próprios para pagar benefícios sociais. Essa preocupação se relaciona aos dispositivos legais que disciplinam a matéria. O artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) não deixa dúvida: banco estatal está proibido de fazer operação de crédito para o seu controlador. Dispositivo semelhante consta da chamada lei do colarinho branco (lei 7.492/1986), que define os crimes contra o sistema financeiro nacional.

É preciso reconhecer que há certa imprevisibilidade nos pagamentos de benefícios sociais, pois não é possível estimar com exatidão os valores que eles atingirão em determinado mês. Mas é de se esperar que essas variações - para mais ou para menos - sejam de pequeno montante e possam ser resolvidas com rapidez. Os dados que constam do ofício da Caixa para a CCAF/AGU mostram, no entanto, outra realidade. No caso do programa Bolsa Família, por exemplo, a insuficiência de recursos do Tesouro está sendo constante e elevada, tendo atingido R$ 658,5 milhões no dia 24 de junho deste ano. A Caixa também levou à CCFA/AGU o mesmo problema relacionado com o pagamento do seguro desemprego e do abono salarial.

A operação sugere que a Caixa instituiu uma espécie de "cheque especial" para o Tesouro Nacional que pode, assim, sacar a descoberto para pagar benefícios. Do ponto de vista estritamente econômico, não há dúvida que o banco estatal está antecipando receita ao Tesouro - operação que lembra a chamada ARO ou antecipação de receita orçamentária.

O governo federal alega que os malabarismos contábeis não ferem qualquer dispositivo legal. O uso de bancos estatais para pagar despesas da União, no entanto, tem todos os elementos para colidir com o arcabouço legal instituído a duras penas para impor a responsabilidade fiscal no país. A "contabilidade criativa" está se tornando perigosa.